Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

01 abril, 2013

Tirou então o creme e olhou em frente


Velho, gasto, desengraçado. A humidade traz dores, as articulações estão presas, o tempo nunca me engana. O cabelo ralo, pouco, quase branco. As peles a ficarem flácidas. Onde antes havia um peito bonito, musculado, agora começam a aparecer umas pregas que dão pena. E as pernas magras. E rugas, rugas à volta dos olhos, da boca, no pescoço, nos braços. Peles sem viço, baças. 

Alguns dentes partidos, os de trás. Nem vale a pena arranjar. Talvez não se veja.

A roupa já não disfarça o quanto o corpo se gastou.

Mas finjo que não. Digo que a idade está na cabeça, não no corpo. Finjo que está tudo inteiro, a funcionar como antes. 

Antes de sair, olho-me no espelho. Talvez disfarce. Olho-me de lado, num rápido relance. O perfume é o mesmo, o jeito de olhar também, talvez. O casaco elegante, acho. A camisa bonita, as calças à medida. Talvez disfarce.

Chego. Rio, digo umas piadas. Riem-se. Igual. A mesma destreza verbal, a mesma agilidade mental. Esqueço-me. Faço de conta que tenho outra vez vinte anos, a vida pela frente, um rosto sem rugas, um corpo forte, rápido nas reacções. Vou à casa de banho e constato que estou bem, bem conservado. Tenho charme, as mulheres acham-me graça, gostam de estar ao pé de mim, seduzo-as discretamente e elas deixam-se seduzir. Agora tal como antes. A mesma coisa. Não sabem nem eu deixo que percebam que, por dentro, me gastei. Pareço ser o que era. Parece que tenho ainda a idade que tinha quando me sentia pronto para viver a vida toda.

Mas não tenho.

Representar já me cansa.

Desloco-me, então, sozinho, até ao jardim junto ao rio. Deixo cair os ombros, deixo que se dobrem as costas, fico mais baixo, o meu corpo aproxima-se do chão. Descalço-me, penduro os sapatos ao ombro. Deixo que o vento me leve a roupa. Deixo que a chuva me lave a pele, me leve a pele, a carne, desfaço-me. Deixo que o tempo me leve, feito pó levado pelo vento. Desapareço, voo, deixo de existir, de ser eu. 

E, de longe, os outros assistem, sem um sorriso, à visão daquela triste parede onde apenas uma pequena parte de mim ainda resiste.




[Abaixo do sentido poema de Renata Correia Botelho, uma grande interpretação num registo aqui pouco frequente: Catrin Finch interpreta, na harpa, uma música celta]


Pintura gasta numa parede do Jardim do Ginjal

                                         

                                              Tirou então o creme e olhou em frente.

                                              Depois do trapézio, a vida concedera-lhe
                                              palavras poucas, um espelho,
                                              uma mala gasta onde arrumar as dores.

                                              Primeiro cobriu a testa, da esquerda
                                              para a direita, com a mestria de um cego
                                              que tacteia o seu nome no escuro.
                                              Os olhos e os lábios em seguida,
                                              até nada restar de voo sobre a pele.

                                              o céu poente abrigava um bater de asas,
                                              cortando de penas aquele silêncio crepuscular.

                                              E nós assistíamos, sem rede,
                                              ao sorriso primeiro do mimo.


['O sorriso do mimo' de Renata Correia Botelho in 'Resumo, a poesia em 2012']


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