Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

02 abril, 2013

É a paisagem que desejo, o teu corpo assim pintado perto do rio


Como um animal vencido curvo-me a teus pés e não sei se me ajoelho perante este rio liso e alinhado como um lençol ou se me ajoelho a teus pés para te pedir que te deites comigo neste leito macio e azul.

Espreito-te, rendido, aí estás muito bela, erguida como uma árvore elegante e suave. 

Penso ou sonho, não sei, que um dia darás frutos e fecho os olhos porque sei que, nessa altura, os tomarei nas minhas mãos, agradecido. Depois tomá-los-ás tu, meu amor, e dar-lhes-ás todo o teu carinho e o leite morno dos teus seios.

Olhas o rio, olhas para mim, paciente, esperas que me passe esta devoção feita de amor, desejo e lágrimas.

Digo-te vamos mergulhar, vamos deitar-nos nesta cama, vamos amar-nos no fundo do mar. Ris. Paciente, esperas, sorris, levanta-te, anda.

Mas não posso. Ainda não.

Venero as águas puras deste rio tão amado, estas águas cheirosas, carregadas de doce maresia, e venero o teu corpo, as pernas talhadas com delicadeza, as ancas redondas e macias como as margens deste rio quase mar, os seios erguidos como arbustos floridos, os braços longos como asas, o rosto belo como o céu.

Insistes, sorrindo, vá lá, levanta-te, vem. Peço-te, espera, deixa-me aqui estar, deixa-me aspirar o cheiro do rio, deixa-me escutar o silêncio das águas, a doçura desta tarde. Respondes, então, se não vens, vou eu, espero por ti lá em cima

E eu ergo o rosto a tempo de ter ver abrir os braços, desdobrar as longas asas coloridas e voar, elevando-te, livre, bela, dançando no ar, desenhando a paisagem, soltando no horizonte luzes douradas que parecem palavras doces como o amor.




[A seguir ao belo poema de Manuel Gusmão poderá ouvir-se uma música imprevista, um intérprete imprevisto, um grande intérprete. É na rua, em Villa de Cura, Aragua, Venezuela  que Victor Morales improvisa uma quirpa llanera]


Num dos cais do Ginjal, sobre o Tejo



                                                É a paisagem que desejo
                                                o teu corpo assim pintado
                                                perto do rio e das suas margens
                                                erguido como as árvores, em tumulto
                                                como os maciços de arbustos.
                                                o teu corpo dá frutos que apanhas
                                                e fazes com eles um chapéu
                                                de abas pintadas como
                                                nas aves as asas.


['A pintura corpo a corpo, os corpos das pinturas; pintores pintados' #3 de Manuel Gusmão in 'Pequeno tratado das figuras']


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