Num dia frio, chuvoso, uma cinza molhada caindo sobre o rio, as gaivotas gritando sobre os beirais, os gatos fugindo das sombras, vejo junto ao chão, encostados a uma parede caiada, uns focos de luz dourada, quente.
Aproximo-me e são pequenas ilhas sumarentas, certamente muito doces, pequenos sóis, cercadas de névoa e de desolado frio. Eu, também rodeada de sombras e neblina, vou-me chegando, busco a luz, o calor luminoso, o suco doce, apetece-me mergulhar as mãos nesta luz estelar, rodeio as pequenas e pesadas laranjas. Sinto tanta sede de doçura.
Num cesto feito de finos vimes que alguém carinhosamente entrançou, repousam as ilhas de sumo laranja. De onde veio este sumo? Da seiva da árvore-mãe, da terra, do sol. E, quando as noites caem e o sol se recolhe, as laranjas repousam, frias, pacientes, perfumadas, esperando que a luz volte, cheia de doçura. Cheiram tão bem estas laranjas.
Mais tarde a seiva escorrerá pela boca sequiosa de alguém que se encherá de luz, de ouro muito doce. A doçura que veio da terra e a luz que veio do sol entrarão no corpo sedento de alguém que passeia rente ao rio num dia envolto em névoa. Assim é a vida. Transitória. Bela, dourada, perfumada. Delicada.
[Abaixo das laranjas de Herberto Helder, mais uma grande interpretação. Continuamos com Martha Algerich, desta vez tocando Domenico Scarlatti]
Laranjas num cesto no Ginjal |
Nesta laranja encontro aquele repouso frio
e intenso que conheço
como um dom impossuído.
Do ouro terá a luz interior, terá
a graça desconhecida daquilo que mal pousa
na mesa, no mundo.
- Passar nocturno da água que o sangue
mudamente imita. Ilha cercada
de todos os lados
por uma inumerável, inominável
sede humana.
[Poema de Herberto Helder in Textos e Pretextos Nº 17]
De como beber o sumo das palavras de Herberto.
ResponderEliminarAbraço
Como eu gostei do que escreveu... As palavras de Herberto são palavras que vivem, luminosas, no interior da terra e das coisas da terra.
EliminarMuito obrigada.
Um abraço.