Dedico esta história a todas as meninas e meninos que estão para aí feeling blue.
Escuta, menina que aí estás aí, e tu também, menino: escutem, vou contar-vos uma história.
Era uma vez um homem que parecia normal e que vivia sozinho. E era uma vez uma mulher que também parecia normal e que vivia numa torre triste num local longínquo.
A mulher era muito bonita, sabia histórias muito bonitas, escrevia palavras muito bonitas - e, portanto, afinal não era uma mulher nada normal - mas vivia fechada na sua torre e poucas pessoas podiam ouvir o que dizia.
O homem era também muito bonito mas também não era nada normal. Era um sonhador solitário. Tinha por única companhia um ganso emplumado.
O homem bonito e sonhador não sabia da existência da mulher bonita e solitária nem ela sabia da existência dele.
Até que um dia a mulher abriu a porta e desceu pelos caminhos das montanhas, atravessou trovoadas, nuvens pesadas, raios e trovões, campos floridos, searas ondulantes, ruas, cidades. Diz quem a viu passar que vinha com a mãe pela mão e vinham conversando, rindo, e a mulher era outra vez uma menina alegre e a mãe era outra vez uma mulher que adorava caminhar e dançar e ver o sol. Vinham as duas, contando histórias uma à outra, e mediam os passos pelas horas do sol e nem davam pelo cair da noite. A mulher bonita dizia à mãe, mãe, vamos ver o mar que eu quero respirar a maresia, quero sentir a areia nos pés quando raiar a manhã.
Nesse dia o homem também saíu de casa, e de cabeça baixa, sem saber para onde os passos o levavam, começou a caminhar. Atrás dele seguia o silencioso ganso. E o homem dizia como se falasse com o ganso, venho de dentro de mim, venho para ver o nascer e o pôr do sol junto ao rio, e quero sentir como soa a minha voz quando a soltar junto às imensas águas.
E, sem saberem, caminhavam um para o outro. A mulher com a sua mãe, o homem com o seu ganso.
Encontraram-se ao fim do dia e, sem que antes se tivessem visto, reconheceram-se de imediato. A aragem soprava e as penas do ganso revolteavam-se, alegres. A mãe disse, as minhas pernas já não são o que eram dantes, sento-me aqui ao pé do ganso que tem ar de ser inteligente e bem disposto.
E, então, a mulher e o homem deram-se as mãos e juntos olharam o horizonte e ele disse, gosto tanto de ver o sol quando ele se põe a poente. Gostava de ficar aqui consigo, a noite toda, deixarmo-nos ficar até que ele nasça a nascente. A mulher riu e disse, olha, dois pleonasmos quase de seguida. E ele riu e disse, até que enfim alguém que me alerte para os pleonasmos, o ganso deixa-os passar a todos. A mulher riu e disse gosto de homens que me façam rir.
Depois ele afastou-lhe do rosto o cabelo que o vento despenteava, abraçou-a e disse, o meu corpo era um labirinto no qual eu me perdia. E ela respondeu, há uma mansidão na minha pele, sinta-a antes que toda ela fique uma convulsão.
Beijaram-se e era como se toda a vida tivessem esperado um pelo outro. O homem disse então, havia uma sombra sobre o meu coração mas senti que ela acabou de voar. A mulher disse, pois foi, via-a desprender-se de si. Mas foi para longe.
De longe, a mãe olhava-os e sorrindo disse ao ganso, e nós? vamos ficar aqui a segurar a vela? nem pensar. Estou cheia de fome. Por aqui onde é que se come?
E então o ganso sacudiu as penas e pôs-se a andar. A mãe levantou-se e foi atrás dele. Depois, de longe, olhou para trás e disse para o ganso, olha, que engraçado, estão os dois envoltos em luz e que lindos são, foram feitos um para o outro.
Como estava longe não o ouviu dizer à filha, vamos sair daqui, a luz do candeeiro é muito indiscreta. E ela sorriu, puxou-o pela mão e disse, venha que eu quero sentir a areia em toda a pele do meu corpo.
E foram muito felizes, tanto, tanto, tanto que era como se tivessem sido felizes desde sempre. E logo souberam que o seriam para todo o sempre.
[Abaixo do homem sonhador, um poema de Luíza Neto Jorge e, logo a seguir, mais uma grande interpretação ao piano de Richter, desta vez intrepretando Haydn]
Homem e ganso no Ginjal |
Venho de dentro, abriu-se a porta:
nem todas as horas do dia e da noite
me darão para olhar de nascente
a poente e pelo meio as ilhas.
Há um jogo de relâmpagos sobre o mundo
de só imaginá-la a luz fulmina-me,
na outra face ainda é sombra
Banhos de sol
nas primeiras areias da manhã
Mansidões na pele e do labirinto só
a convulsa circunvolução do corpo.
['Venho de dentro, abriu-se a porta...' de Luíza Neto Jorge in ´poesia']
Olá UJM!
ResponderEliminarBelíssimo texto o seu!!!
Como diz um seu leitor gostei ...e muito!
Faz bem ao "âmago" lê-lo!!!
Obrigado e um abraço
Ah, ainda bem que gostou...!
EliminarEu também gostei de o escrever. Quando escrevo coisas assim só me apetece continuar, continuar, tudo na boa, tudo peace ando love com sorrisos à mistura. Estava a ouvir o Richter a tocar o Haydn e, com música, o clima fica ainda melhor.
Só desejo que quem esteja com alguma solidão ou tristeza, ao lê-lo, se sinta depois contagiado pelo ambiente de afecto e leveza.
Muito obrigada, eu, pela presença aí desse lado e pelas palavras sempre tão boas de ler.
Um abraço.
Prosa, imagem,poesia,
ResponderEliminarque adjuvante trio para afastar o cinzento do dia!
A.de Sá, indefectível:
"Creio que o Amor tem asas de ouro. Ámen" (Natália Correia)
Ana de Sá,
EliminarÁmen.
Muito obrigada e um abraço!
"Um amigo é às vezes o deserto,
ResponderEliminaroutras a água."
(Eugénio, in Branco no Branco)
As suas palavras foram uma autêntica cascata de água pura, fresca, optimista.
Lavaram a minha cabecita cheia de ideias tristes e a minha alma cheia de sentimentos negativos.
Sinto-me mais leve, mais fresca, mais feliz, enfim a brand new girl!
E agora vou à procura do homem do ganso... LOL
Beijo enorme.
Antonieta
Olá Antonieta,
EliminarGostei muito de ler o que escreveu e se, nem que apenas por momentos, consegui que se sentisse um pouco mais leve e feliz, já me sinto recompensada... e muito.
Obrigada e boa sorte com o homem do ganso.
Um beijinho.
Gostei muito e muito!
ResponderEliminarOlá Menina das Historinhas,
EliminarE eu gostei muito e muito de saber que a minha historinha lhe mereceu essa observação.
Ia a dizer 'beijocas' mas não digo para não pensarem que nos conhecemos.
Da sensibilidade e da imaginação.
ResponderEliminarMuito bonito.
:)
Da generosidade e da delicadeza.
Eliminar:)
Muito bonitos: o texto, o poema, o homem com ganso, a música.
ResponderEliminarGeneroso conselho, a porta a brir-se.
Abraço
Olá Leitora Fantástica,
EliminarAbrir a porta de si próprio, sair pelo mundo, procurar o amor através das palavras: não sei dar muitos conselhos mas este sei eu que é infalível.
Um abraço!
Este seu cantinho é uma lufada de ar fresco, um renovar da fantasia, dos desejos, dos sonhos. Muito bonito o conto, como aliás muitos outros.
ResponderEliminarQuero oferecê-lo mas não consegui partilhar.Vou tentar imprimir.
Obrigada e um beijinho
Olá Pôr do Sol,
EliminarAqui eu escrevo com leveza no coração e mãos muito livres. Escrevo tal como as palavras me descem aos dedos.
Vou ver se consigo descobrir uma coisa que se põe nos textos aqui nos blogues e que dê para partilhar.
Obrigada eu, Sol Nascente, e um beijinho!
Já incluí uma opção que faz com que, no final de cada mensagem, apareçam um envelope e os símbolos do facebook e outras coisas. Deve ser isso que vai permitir que se partilhe. Se não for, diga-me, está bem?, que eu procuro melhor.
EliminarSó uma pessoa com um coração tão sensível e sábio pode dar conselhos tão 'infalíveis': Abrir a porta e deixar entrar o amor, através das palavras e da música.
ResponderEliminarMuito bonita a história, onde não podia faltar o elemento animal...o ganso amigo e companheiro do homem solitário à procura da felicidade.
Um beijinho e obrigada.
Maria Eduardo,
ResponderEliminarGosto de escrever coisas que incluam algum humor, alguma impossibilidade. Nem sempre as palavras vão para este lado mas, quando vão, eu fico muito contente.
Um beijinho!