O amarelo nos espaços, dizem, estimula o companheirismo, o trabalho de equipa. Alguém nos disse, vendo-nos sempre tão indiferentes, pintem o quarto de amarelo. E nós, estando por tudo, e não nos interessando por nada, assim o fizemos.
Eu queria amarelo da cor do sol e tu, mais moderado, quiseste amarelo da cor do mel. Aceitei, tanto me fazia. Procuraria o sol noutro lado.
Dizias, talvez o mel das paredes escorra para o teu coração, para os teus lábios. Deixa que eu os beije e sinta a doçura que já não vejo nos teus olhos - como eram antes, lembras-te?
Encolhi os ombros. Está bem.
Mas eu não tinha mel no coração pelo que também não o encontraste nos meus lábios. E eu dizia-te, devíamos ter pintado as paredes da cor do sol para ver se as sombras param de invadir este nosso espaço. Encolhias os ombros, para quê a luz dentro de casa? Se a queres, procura-a na rua. E eu procurei.
Hoje, tanto tempo depois, voltámos lá. Não se deve voltar ao lugar onde já fomos felizes, parafraseaste. Não sei se fomos muito felizes naquele quarto, corrigi.
Mas voltámos.
Já não estava amarelo. Alguém o tinha pintado de azul. Um poeta e a sua amante viviam agora intensas paixões naquele quarto azul. Abriste a janela. Entrou uma aragem que cheirava a maresia e, no silêncio daquele quarto, uma música de prata vinda dum móbil suspenso do tecto, percorreu-me os sentidos.
Vamo-nos embora, disse-te; quis logo sair dali, fugir. Olhaste à volta, parecias procurar qualquer coisa. Há aqui qualquer coisa, disseste.
Puxei-te para fora. E afastei-me apressadamente.
Não te disse que aquele lugar há muito que tinha deixado de ser teu. Não te disse que é neste quarto azul com cheiro a mar, com a música de prata, leve, muito leve, afagando a minha pele que agora ouço palavras de amor da boca de um poeta.
[Abaixo da gaivota que hesita entre o amarelo e o azul, um poema de Soledade Santos, uma poetisa de cuja poesia muito gosto. A seguir, no ciclo dos Grandes Intérpretes, Sviatoslav Richter, pianista. Começa com Schubert. Uma maravilha.]
Gaivota, numa manhã muito fria, no Ginjal: o Tejo muito, muito azul |
Como entrar num quarto
que pintámos de amarelo e encontrá-lo desse azul
a que os ingleses chamam blue
E suspenso do tecto
em silêncios de prata um móbil
no espaço quieto.
[Blue de Soledade Santos in 'Sob os teus pés a terra']
Soledade Santos ter acabado com o seu blog, nocturnocomgatos, foi um empobrecimento, tanto mais, que seja do meu conhecimento, pouco publica.
ResponderEliminarA. de Sá
Pois é, Ana de Sá, só lhe conheço este livro de que gosto imenso. Ainda ontem à noite andei à procura do nocturno com gatos e vejo vestígios de blogues com esse nome no blogspot, no wordpress mas sem nada. No weblog acabou, que eu tenha percebido. É uma pena, sim.
EliminarMais uma bela surpresa neste cantinho de paz e tranquilidade!
ResponderEliminarUma nova poetisa, uma bela gaivota 'indecisa' e as palavras sempre mágicas da nossa Jeitinho.
Obrigada!
Antonieta
ps: Também fui à procura do blog (belo nome) mas não encontrei nada...
Do meu conhecimento, além de Sob os teus pés a terra, está também publicada em Quatro poetas da Net
ResponderEliminarSoledade Santos encerrou o nocturno/ weblog.Felizmente, continua, ainda que de modo algo errático, a arca da Jade (blogs.sapo)- textos de autores diversos - um deleite para quem ama felinos.
- da própria SS: http://arcadajade.blogs.sapo.pt/tag/soledade -
Em vários blogues, portugueses e brasileiros, podemos, ainda, ler alguns dos seus textos publicados no nocturno; dentre eles, permito-me destacar o blogue da querida e saudosa Amélia Pais http://barcosflores.blogspot.pt/
Agradecida,
Ana de Sá
Já andei a ver. Não conhecia nada do que aqui me envia. Fala do blogue de Amélia Pais e eu não sabia quem era. Procurei e agora já sei e já sei que o soube tarde demais. Fico muito agradecida, eu, por me ter dado a conhecer estes locais especiais.
EliminarMuito obrigada, Ana de Sá.
...ou as recordações do quarto amarelo.
ResponderEliminar:)
Há imensas coisas sobre a casa amarela, até mais do que sobre o quarto amarelo.
EliminarOntem não fui só à tarde ao pé do rio: fui também logo de manhã cedo. Fico com a sensação que preciso de andar ao ar livre, especialmente ao pé do rio, para ficar mais bem disposta para o resto do dia. E vi esta gaivota ali, parecia hesitar entre andar ali sobre o amarelo e voar para o rio. Depois lembrei-me deste poema e achei que vinha mesmo a calhar.
Maluquices de quem tem as paredes de dentro da cabeça pintadas de amarelo. :))
bela conjugação de texto e imagem.
ResponderEliminarMuito obrigada, Luís.
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