Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

08 janeiro, 2013

De novo o perfume que trouxeste contigo do outro lado da terra


A jovem mulher percorre, sozinha, os velhos caminhos, encanta-se com o velho casario, pára a olhar. 

Tem um corpo decidido, andar firme, cabeça erguida, porte orgulhoso e confiante. Tem tempo. À sua frente vê, certamente, os dias que se multiplicam. 

Anda e olha sem pressa. Transporta a sabedoria dos ternos deuses, dos antigos pescadores, a doçura do vento.

Tem pela frente uma vida cheia de mar, de veleiros, de gaivotas, de céu. Avança enquanto aspira a maresia. 

Avança em silêncio, solitária mas sem solidão sobre os seus ombros inocentes. 

Não sei como é a sua voz, o seu riso. Apenas sei do andar rente ao rio, rente aos gatos, rente às paredes que o tempo vai tingindo. 

Serena, como se de si viesse um perfume de mulher, como se o corpo se cobrisse de sal em dias de sol, praia e amor, a jovem mulher vai caminhando. Sente a relva que vai pisando com cuidado, caminha como se dançasse nos passeios junto às casas, e olha, olha o espaço, olha a grande cidade do outro lado, olha. Anda e olha.

Nunca antes a tinha visto por aqui. 

Talvez a volte a ver, ela e os gatos, ela e as gaivotas, ela e o silêncio que ondula sobre as águas como um riso secreto.

Talvez a veja um dia a sair dali a voar, talvez vá até ao outro lado da terra, ou talvez até aos braços de um marinheiro que passe num veleiro branco, levado pelo vento.



[Aqui a seguir um belo poema de Daniel Filipe, um jovem cabo-verdiano a quem os deuses chamaram muito cedo e logo depois mais um momento feliz, um momento de cumplicidade entre António Zambujo e Raquel Tavares]


No jardim do Ginjal, de frente para o velho casario


                                              De novo o espelho, a imagem facetada,
                                              o dia multiplicado, o número secreto da besta apocalíptica.
                                              De novo a serena postura que aprendeste dos deuses, por um
                                                             outono agreste e solitário
                                               De novo a tua voz ondulando o silêncio,
                                               desfolhando o riso sobre as águas,
                                               que deixam marcas de sal no teu corpo húmido de amor.
                                               De novo o perfume que trouxeste contigo do outro lado da
                                                               terra
                                               e precede teus passos,
                                               teu riso,
                                               tua voz.


['Ilha em corpo de mulher - V' de Daniel Filipe in 'pátria lugar de exílio']

*


Pousou o olhar
Nos pássaros
E voou
E voou com com eles.
Esqueceu o espaço
E voou
Voou sempre
Para além do tempo
Para longe
Para muito longe
Para além de si. 


['Será que...' de Joaquim Castilho num comentário aqui abaixo]


2 comentários:


  1. Será que....


    Pousou o olhar
    Nos pássaros
    E voou
    E voou com com eles.
    Esqueceu o espaço
    E voou
    Voou sempre
    Para além do tempo
    Para longe
    Para muito longe
    Para além de si.

    um abraço

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    1. Olá Joaquim,

      Pois é, será que...?

      Um dia ainda vou vê-la a passar aqui junto à minha janela, a voar no meio das gaivotas.

      Muito obrigada pelo poema. Já lá está, no lugar devido.

      Um abraço.

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