A jovem mulher percorre, sozinha, os velhos caminhos, encanta-se com o velho casario, pára a olhar.
Tem um corpo decidido, andar firme, cabeça erguida, porte orgulhoso e confiante. Tem tempo. À sua frente vê, certamente, os dias que se multiplicam.
Anda e olha sem pressa. Transporta a sabedoria dos ternos deuses, dos antigos pescadores, a doçura do vento.
Tem pela frente uma vida cheia de mar, de veleiros, de gaivotas, de céu. Avança enquanto aspira a maresia.
Avança em silêncio, solitária mas sem solidão sobre os seus ombros inocentes.
Não sei como é a sua voz, o seu riso. Apenas sei do andar rente ao rio, rente aos gatos, rente às paredes que o tempo vai tingindo.
Serena, como se de si viesse um perfume de mulher, como se o corpo se cobrisse de sal em dias de sol, praia e amor, a jovem mulher vai caminhando. Sente a relva que vai pisando com cuidado, caminha como se dançasse nos passeios junto às casas, e olha, olha o espaço, olha a grande cidade do outro lado, olha. Anda e olha.
Nunca antes a tinha visto por aqui.
Talvez a volte a ver, ela e os gatos, ela e as gaivotas, ela e o silêncio que ondula sobre as águas como um riso secreto.
Talvez a veja um dia a sair dali a voar, talvez vá até ao outro lado da terra, ou talvez até aos braços de um marinheiro que passe num veleiro branco, levado pelo vento.
[Aqui a seguir um belo poema de Daniel Filipe, um jovem cabo-verdiano a quem os deuses chamaram muito cedo e logo depois mais um momento feliz, um momento de cumplicidade entre António Zambujo e Raquel Tavares]
No jardim do Ginjal, de frente para o velho casario |
De novo o espelho, a imagem facetada,
o dia multiplicado, o número secreto da besta apocalíptica.
De novo a serena postura que aprendeste dos deuses, por um
outono agreste e solitário
De novo a tua voz ondulando o silêncio,
desfolhando o riso sobre as águas,
que deixam marcas de sal no teu corpo húmido de amor.
De novo o perfume que trouxeste contigo do outro lado da
terra
e precede teus passos,
teu riso,
tua voz.
['Ilha em corpo de mulher - V' de Daniel Filipe in 'pátria lugar de exílio']
*
Pousou o olhar
Nos pássaros
E voou
E voou com com eles.
Esqueceu o espaço
E voou
Voou sempre
Para além do tempo
Para longe
Para muito longe
Para além de si.
['Será que...' de Joaquim Castilho num comentário aqui abaixo]
ResponderEliminarSerá que....
Pousou o olhar
Nos pássaros
E voou
E voou com com eles.
Esqueceu o espaço
E voou
Voou sempre
Para além do tempo
Para longe
Para muito longe
Para além de si.
um abraço
Olá Joaquim,
EliminarPois é, será que...?
Um dia ainda vou vê-la a passar aqui junto à minha janela, a voar no meio das gaivotas.
Muito obrigada pelo poema. Já lá está, no lugar devido.
Um abraço.