Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

10 janeiro, 2013

Comovem-me ainda os dias que se levantam no deserto das nossas vidas



As luzes da cidade acendem-se à medida que a luz do sol se apaga. O rio escurece. Não há ninguém por aqui. Onde antes havia vida, pescadores, gente enamorada, pássaros de longas asas brancas, veleiros elegantes desfiando velas ao vento, gatos vadiando, havia hoje silêncio, uma solidão suave, e mais nada.

Passei rente ao rio vagaroso, procurei-te, esperei que aparecesses. Mas não. Claro que não. Os teus sorrisos já não andam por estas paragens. E a tua voz quente e grave cicia segredos junto à curva do pescoço de outras que não eu. Sei bem disso. Aceito isso. Claro que sim.

A água no chão depois das chuvas é a mesma de outros tempos, o cheiro fresco da maresia também, as cores macias do fim do dia são ainda iguais, tudo parece igual. Mas eu já não sou a mesma. Onde antes passava uma mulher venturosa, passa agora uma mulher saudosa. Comove-me a beleza deste fim de tarde, um fim de tarde igual ao que tantas vezes vivi junto a ti, comove-me este silêncio onde dantes eu distinguia a tua respiração, agora nada perturba este silêncio triste. Comovem-me estes dias que parecem os mesmos que os outros, os dias felizes do nosso enamoramento. Mas agora tu já não estás dentro destes dias e isso comove-me muito.

Que silêncio, que solidão, meu amigo.

Apenas um velho pescador aqui ficou. Cabelos brancos, costas curvadas, ele vira as costas às luzes que se acendem na grande cidade e olha, sem esperança, o velho casario. Mas ninguém assoma às janelas abandonadas, ninguém atravessa as paredes gastas, ninguém. Espera em vão.

Eu também.

Penso ainda tanto em ti.



[Abaixo do homem que espera em vão num fim de tarde solitário, um belo poema de José Agostinho Baptista e, logo a seguir, não é tempo para tristezas: as saudades apagam-se com beijos e a música é morna e o afecto é venturoso: Mariza e Tipo Paris num momento feliz.]


No Ginjal, bem sobre o Tejo, de costas voltadas para Lisboa



                                                 Comovem-me ainda os dias que se levantam
                                                 no deserto das nossas vidas.

                                                 Dos belos palácios da saudade
                                                 não resta a impressão dos dedos nas colunas
                                                 fendidas, e nada cresce nos pátios.

                                                 Muito além, depois das casas, o último
                                                 marinheiro continua sentado.
                                                 Os seus cabelos são brancos, pouco a pouco.

                                                 Aqui, tudo se resume a algumas tâmaras que
                                                 secaram ao sol,
                                                 longe do orvalho,
                                                 das fontes que pareciam nascer de um olhar
                                                 turvo sobre a sede da terra.

                                                 Comovem-me ainda as palavras que dizias
                                                 aos meus ouvidos aprisionados pela música.
                                                 Comovem-me as cadeiras vazias, no pátio.

                                                 Lembro-me sempre de ti.



['Comovem-me' de José Agostinho Baptista in 'Esta voz é quase o vento']

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Nos dias cinzentos
Iguais
A tantos outros dias cinzentos
Uma luz 
Uma luz eterna
Um fogo brando
Ilumina os silêncios
Sorrindo
Sorrindo sempre
Lá longe
No fundo do tempo.


['Como se fosse um dia cinzento' de Joaquim Castilho num comentário abaixo]



8 comentários:

  1. Olá UJM!

    Como se fosse um dia cinzento:

    Nos dias cinzentos
    Iguais
    A tantos outros dias cinzentos
    Uma luz
    Uma luz eterna
    Um fogo brando
    Ilumina os silêncios
    Sorrindo
    Sorrindo sempre
    Lá longe
    No fundo do tempo.

    um abraço

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    1. Eu é que me comovo mesmo com isto. Leio o poema, penso na facilidade com que as palavras lhe aparecem para retratar tão bem o que acabo de escrever, e fico mesmo comovida.

      Muito obrigada.

      O poema está lá onde deve.

      Um abraço agradecido.

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  2. Lembro-me de almoçar no Ginjal.
    E lembro-me de uns chocos grelhados, numa tasca à beirnha do rio, mesmo ao fundo dessa muralha que o bordeja, antes de chegar a umas escadinhas que subiam até, não sei onde.
    Era uma tasca pequena, um balcão, 2 ou 3 mesas, galinhas e pombos a cirandar por ali, entre os fregueses e o marujar das ondas logo ali ao lado.
    O Ginjal, este e o outro que lhe deu nome, são um mundo diferente, uma placidez que nos faz desejar não possuir nada para além dos sentidos.

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    1. Olá Bartolomeu,

      Que bom vê-lo por aqui. E como gostei de ler o que escreveu...

      O sítio que descreve é onde existe o restaurante Ponto Final e um outro, o Atira-te ao Rio. São sítios únicos. Pode a comida nem ser extraordinária mas é um local ímpar.

      Não me canso de andar por ali, vendo os gatos vadios, as gaivotas, os pontos, os barcos, o rio, Lisboa, tudo.

      Tento transmitir aqui aquilo que vejo e sinto.

      Muito obrigada pela visita e pelas palavras.

      Um abraço, Bartolomeu!

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  3. O que nos serena e tranquiliza é este seu cantinho!!
    Aqui há sempre poesia, paz de espírito, dias menos cinzentos e muito, muito amor.
    Ao longo da minha vida foram poucas as vezes que fui ao Ginjal, mas curiosamente no ano que há pouco acabou, fui lá almoçar duas vezes, almoços de amigas, reformadas recentemente.
    Os restaurantes, foram diferentes de uma e da outra vez, mas qualquer um deles muito bom.
    Adorámos e vamos repetir mais vezes!!
    Beijinho Grande.
    MCP

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    1. Olá MCP,

      Eu para almoçar ou jantar e se for pela comida, prefiro o Farol que é um restaurante/cervejaria que está à saída dos barcos de passageiros, logo na esquina de entrada para a rua do Ginjal. No verão há lá umas sardinhas muito boas ou caracóis. Gosto de lá ir comer caracóis ao fim da tarde. Tem sempre bom peixe e come-se lá bem e em conta.

      Os restaurantes que referi acima têm uma vista fantástica e, no verão, de tarde, são uma esplanada fantástica para se estar com um sumo ou uma cerveja a olhar o rio. A comida é razoável e se for uma refeição pelo ambiente talvez estes sejam melhores pois dão azo a estar com vagar e pouco barulho a olhar a vista.

      Passear no Ginjal é uma maravilha mas não deve vir sozinha pois aquilo por vezes é meio deserto, e aquelas casas vazias podem meter um bocado de medo a quem vá sozinha. E há uma zona, a meio, onde há uma ou duas casas habitadas e, por vezes, o movimento não é dos mais 'cosmopolitas'. A vir passear por aqui, então acho bem que venha sempre acompanhada.

      Um beijinho!

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  4. belissimo poema o de josé agostinho baptista, versos de mestre, comovem-me as cadeiras vazias no pátio, preciosa imagem visual que nos faz pensar porque se comoverá ao vê-las, e podem ser tantas as razões, a nós imaginar os porquês e comover-nos tambem com essas cadeiras no pátio.

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  5. É um belo poema. Há qualquer coisa de pungente nessa imagem. Eu quando escrevi até senti pudor em falar nisso, pareceu-me uma coisa muito íntima.

    Obrigada pelas suas palavras, gosto sempre de as ler.

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