Há manhãs de névoa branca, de humidades quase mornas, em que uma intimidade suave envolve as pessoas que percorrem os caminhos junto ao rio, um rio liso, imóvel.
Em manhãs assim, Lisboa é uma imagem, um sonho, uma longínqua ideia, uma pintura a tinta de água, uma imensa recordação, e as pessoas vão em silêncio pelos caminhos molhados das margens, um silêncio branco.
Em manhãs assim, as pessoas não sabem dizer se é inverno, se é verão, de tal forma as evidências se escondem atrás da humidade densa como poeira, de tal forma a quietude se parece com uma transparente amenidade, com uma doce cumplicidade.
E é em manhãs assim que as gaivotas aparecem, felizes, e dançam, dançam, dançam, rodopiam, elevam-se, dançam, sorriem para as pessoas que passam, soltam gritos livres e olham nos olhos as pessoas que se espantam com esta luz branca que nasce do seu voo, um voo tão branco que quase parece inventado.
[Deixemo-nos levar nas grandes asas destes pássaros que dançam no Tejo, sobrevoemos o belo rio, detenhamo-nos no belo poema de Nuno Júdice e, por fim, pousemos para ouvir o piano de Mussorgsky]
Gaivotas avistadas do Ginjal, sobrevoando o Tejo, com Lisboa em fundo |
Uma luz branca nasce do voo
destes pássaros que habitam as rias,
contamina o mar com a sua ânsia
de equinócio, mancha a superfície
seca das falésias despojadas de musgo.
Os impérios chegaram até aqui
e não souberam o que fazer; há
exércitos sepultados sob as colinas;
a voz dos sacerdotes foi apagada
pelo vento dos invernos.
Como se este fosse o destino
de todas as navegações, o limite
a que se acolheram os nómadas
sem rumo, a margem acolhedora
onde se dissipa a poeira das viagens.
[Sul de Nuno Júdice in 'Guia de Conceitos Básicos']
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