Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

02 abril, 2012

Talvez venha procurar-nos só para que se compreenda como é inacessível

 
São tangíveis as coisas perfeitas? Devem ser possuídas as coisas muito belas? Devem ser observadas com olhar indiferente as coisas extraordinárias?

Vou caminhando e deparo-me, num sempre renovado assombro, com um horizonte que se desdobra em beleza, um rio que é um mar, e dizer que é um espelho azul é embaratecer o que está para além da vulgaridade das palavras banais. O rio e o céu tocam-se, ambos lisos e belos, e a ponte é um adorno de uma requintada elegância e Lisboa, feminina, suave, quase branca, com as suas curvas mansas, com a sua leveza transparente mostram-se em toda a sua inexcedível beleza (e que me perdoem os adeptos da linguagem no osso que eu hoje estou dada a adjectivos).

E eu, anónima passeante, caminho deslumbrada, todos os dias deslumbrada, e vejo o navio enorme, azul, tranquilo, de que ontem disse que se esconde sob os telhados deste casario dourado mas, depois, detenho-me em algo ainda mais inesperado. Umas pequenas flores que nascem junto à muralha, flores campestres, uma cor inocente, uma cor quente e rosada e a paisagem ganha, então, a mais sofisticada unidade. E as hastes das pequenas flores disputam, então, a beleza maior com as grandes hastes da ponte.

E eu olho-as, comparo-as e só depois me apercebo que não são comparáveis, complementam-se, embelezam-se mutuamente. A unidade entre o muito grande e o muito pequeno.

E, então, sigo, não me aproximo, não me ocorre colhê-las. O que é assim tão perfeito deve ser deixado no altar da contemplação, inacessível. Pequenas flores não terrenas, intangíveis. 

Mas tão breves, tão perigosamente mortais.



[Passeemos junto às muralhas agora floridas de onde se avista uma beleza extraordinária. E logo a seguir ao belo poema de Fernando Guimarães, um coro infantil ajuda-nos a criar o ambiente onde as flores brilharão em toda a sua inocência.]

Na descida para o Ginjal, flores junto ao grande muro que sustém a barreira  sob a qual
o casario se acolhe - o Tejo, a Ponte 25 de Abril e Lisboa tornam o cenário quase irreal



                        Qualquer flor nasce a partir de si mesma. A sua proximidade
                        transforma-se quase em abandono. Há um íntimo acordo
                        que a separa de tudo. É assim que se encontra
                        uma espécie de respiração, o perfume ou o brilho que existe
                        nestas cores. O vento faz com que estremeça. Por isso cresce
                        lentamente. Talvez venha procurar-nos só para que se compreenda
                        como é inacessível. Não lhe podemos tocar: as pétalas ficaram perdidas
                        no ar, a sua haste torna-se frágil. Depois vem outra imagem
                        ao nosso encontro. Uma flor há-de ensinar-nos também a sua ausência.



                        [’Elegias.2’ de Fernando Guimarães in Revista Relâmpago nº27]
  

6 comentários:

  1. Tudo suave, tudo belo: Lisboa, a ponte, as mimosas flores. Por aqui acabou de passar a mão de Deus e a sua perfeição, que faz eco nas suas palavras que têm o condão de enquadrar tudo o que é simples ou parece simples, talvez inacessível a um olhar desatento, numa grandiosidade sem limites.

    E, Fernando Guimarães a dizer 'Qualquer flor nasce a partir de si mesma...' desenvolvendo a seguir a sua tese poética, concluindo-a com estas palavras não menos belas:'Uma flor há-de ensinar-nos também a sua ausência'.

    Beijo

    Olinda

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    1. Ah Olinda, perdida de sono, antes de me ir deitar, venho aqui espreitar e vejo estas suas palavras tão amigas, tão cheias de compreensão.

      Eu hoje, aqui, talvez sabendo que, a seguir, iria lá no UJM, falar de pobreza e desemprego, estava toda virada para coisas assim tão simples e a achar que só me saíam palavras simples e, aliás, tinha-me apetecido este poema também tão simples, sobre flores. E só me apetecia escrever: céu, mar, azul, flor, beleza, breve beleza, breve vida. E pensava: oh senhores que hoje não consigo pensar em nada de diferente, só na infinita beleza das coisas simples...!

      E, por isso, soube-me mesmo bem saber que gostou do poema (tão bonito, tão bonito, não é?) e que gostou também da simplicidade das minhas palavras.

      Obrigada, Olinda, obrigada mesmo.

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  2. Cara UJM:
    Por estes dias o silêncio afastou-se da casa, a lotação começa a ficar esgotada, as rotinas modificaram-se e os horários alteram-se.
    O tempo é para cuidar das minhas flores. Um, da pesca submarina, ufano e orgulhoso, trouxe da sua pescaria uma taínha e dois polvitos para cozinhar, (não posso dizer que não) outro apareceu com duas lampreias para arranjar, porque a época está a terminar, outro, lá longe, não atendeu o telefone e, na boca da mãe, a prece, para que tudo esteja bem.
    Depois destas somas para criar dias felizes, é com enorme prazer que assumamos a esta janela e nos deslumbramos, através dos olhos de UJM com a “beleza da linha do horizonte, com telhado do casario dourado, com a flor inocente quente e rosada”. E lembro a minha flor que me ensinou a sua ausência.

    E sempre, as extraordinárias fotografias que acompanham belos poemas.
    Tenha uma boa noite
    abraço da
    Luísa sobe a calçada

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  3. Olá Luísa, subindo a calçada,

    Em primeiro lugar tenho que dizer que espero que já tenha conseguido falar com o rapaz que está longe. Como a percebo. Se algum dos meus não atende o telefone e o tempo passa e eu não consigo falar com eles, só não ponho a polícia, os bombeiros ou as embaixadas (se for no estrangeiro) atrás deles por grande esforço de contenção. É uma angústia sem tamanho. E, logo a seguir, eles ligam, por vezes aborrecidos por verem que eu já tinha tentado ligar mais de 10 vezes - e, afinal, não era nada, ou estavam sem carga ou sem rede ou num sítio em que não dava para atender, ou sem som, ou qualquer motivo insignificante.

    E sentimo-nos ridículas (o que é irrelevante) mas tão tranquilas...!

    De resto vejo que vai grande a azáfama em casa, barafunda talvez, trabalheira talvez, mas, enfim, mil vezes todas essas canseiras do que a solidão. E geralmente, quando a casa está cheia, é uma alegria, uma boa disposição.

    Quando a casa fica, depois, mais descansada (e ficam coisas para arrumar por mais uns dias!) e nós capazes de dormir durante dois dias de seguida, que apaziguamento, que realização, que felicidade, não é?

    De resto, obrigada pelas suas palavras; e que a sua flor consiga descobrir formas de compensar a a ausência.

    Um beijinho, Luísa.

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    1. Cara UJM:
      Obrigada pela atenção.
      Felizmente, preocupação desnecessária. Mera distracção, e logo pela manhã fiquei sossegada.

      Abraço da
      Luísa sobe a calçada

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    2. É sempre assim (felizmente...!). Estão descansados, na vida deles (e ainda bem que assim é) e, por vezes, esquecem-se.

      Mas nunca é nada, a estatística e a experiência já deveriam ser suficientes para que não nos preocupássemos com distracções destas. Mas somos assim mesmo, fazer o quê?

      Mas ainda bem!

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