Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

05 março, 2012

Fará a onda em ponto lento um manto sobre o afogamento

Saio de noite e vagueio sem rumo, sem companhia, sem horizontes. Vou, simplesmente vou. Ia escrever 'voo' mas corrigi, o que quero dizer é que 'vou'.

Não levo carteira, nem quaisquer documentos, nem números de telefone: nada. Vou sozinha, mãos nos bolsos. Uma mulher caminhando na noite.

Ninguém sente a minha falta, ninguém me que roubar porque nada tenho, ninguém tentará sequer beijar-me porque não tenho rosto. Vou em frente, sem destino. Não tenho ancas, nem seios, nem rosto. Sou uma mulher vazia, seca, sem fortuna, sem sorte.

Caminho rente ao rio. Conheço a frialdade da noite, conheço os sons, a água que bate na muralha, um veleiro tardio que entra na doca, rasgando o rio, um silêncio mágico, sombras recortadas, um ondular cúmplice, conheço os vultos que entram nos arbustos, os gemidos, conheço os pássaros que se recolhem. A mim ninguém me conhece, nem sequer alguém me vê. 

Mas se alguém, por distração, me olha, logo vira a cara, num susto, finge que não viu. Uma louca, uma mulher que atravessa a noite, sem rosto, olhos vazios, silenciosa, bravia, uma mulher-bicho, patas mal roçando o chão, asas tombadas, passo apressado.

E, então, chego ao ponto em que o muro desce até ao rio, escadas, escadas que mergulham, e eu, sem abrandar o passo, dirijo-me a elas. Desço-as, decidida. Conheço-as muito bem. Se alguém me vê, finge que não vê, uma louca a afogar-se, pensarão.

E eu entro pela água e as gaivotas quase acordam, há um rumorejar surdo, ajeitam as asas e logo voltam a adormecer, a louca pela água dentro, apenas os cabelos a boiar e, se alguém vê, finge que não viu, deixá-la ir que não faz falta nenhuma. Espero. Ninguém me vem salvar. E nem, ao menos, uma onda. Nem uma onda que cubra este corpo afogado.

Depois, desiludida, volto a sair, subo as escadas, a roupa colada ao corpo, impassível, gelada, triste; e regresso a casa, o passo determinado. Ninguém para me perguntar 'mas o que foi isso?', ninguém para me abraçar e aquecer.

Adormeço. De manhã vou trabalhar, anónima, indefesa, indiferente. À noite sairei outra vez. Todos os dias. 



[Depois da fotografia encontrará o poema Mulher ao Mar e logo a seguir a bela música de Mahler - tempos de inquietação, estes]



                                     MAYDAY lanço, porque a guerra dura
                                     e está vazio o vaso em que parti
                                     e cede ao fundo onde a vaga fura,
                                     suga a fissura, uma falta - não
                                     um tarro de cortiça que vogasse;
                                     especifico: é terracota e fractura,
                                     e eu sou esparsa, e a liquidez maciça.
                                     Tarde, sei, será, se vier socorro:
                                     se transluz pouco ao escuro este sinal,
                                     e a água não prevê qualquer escritura
                                     se jazo aqui: rasura apenas, branda
                                     a costura, fará a onda em ponto
                                     lento um manto sobre o afogamento.


['Mulher ao mar' de Margarida Vale de Gato in 'Mulher ao mar' da Editora Mariposa Azual]
  

5 comentários:

  1. mais um verso e poderia ser um soneto.
    bom o efeito das rimas em ura, finais e internas, como que salpicadas pelo poema.

    e a água não prevê qualquer escritura se jazo aqui ... isto lembrou me algo, um epitafio mandado escrever por um poeta na sua pedra tumular:'here lies one / whose name was written in the water'

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    1. Caro Patrício,

      O que eu gosto da forma como lê os poemas. Tenho sempre que voltar a eles e, ao relê-los, já os vejo diferentes. E que bem escreveu ('rimas finais e internas, como que salpicadas pelo poema' - lindo!).

      E esse epitáfio, tão especial, 'um nome escrito na água' (ou 'dentro de água') - eu, para mim, diria 'sobre a água' porque tenho a mania de que voo como as gaivotas que tanto gosto de observar.

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  2. Não conhecia Margarida Vale de Gato, mas este post levou-me à demanda da escritora poetisa que em lugar de anunciar Homem ao Mar contraria todos os normas e grita “Mulher ao Mar” – mulher livre e determinada que sabe que não pode, não deve permanecer na inércia.
    Sem dúvida uma poesia de qualidade e originalidade a ler e a seguir.
    Luísa sobe a Calçada

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    1. Luísa sobe a Calçada, sobe que sobe, sobe a Calçada,

      As mulheres livres são mais mulheres, afirmam a sua força sem pudores ou meias palavras.

      Haverei de aqui colocar mais poemas desta mulher livre, por vezes desconcertante.

      Agora vou começar a minha empreitada nocturna, escolher uma música, um poema, uma fotografia, escrever um textozito e, depois, seguir para o UJM.

      Um abraço.

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  3. lendo de novo, vejo um pedido de socorro, um naufrágio eminente, mas não desesperado. a situação é aceitada com calma como se fosse a unica saida, a saida natural.

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