Essa mulher que, acossada, caminha de cabeça baixa, andar apressado, nada vê, nada ouve, quase nada sente. Um enorme vazio. Está perdida, foi desapossada. Pensa, quase sem conseguir pensar, em como poderá continuar a sustentar os seus filhos.
Quase raspa o chão de raiva, de medo, de aflição e avança sem destino, respirando um ar frio e molhado que se entranha no seu corpo. Como? Como? Como não perdê-los? Como dar-lhes um futuro? Como impedir que tenham fome?
A mulher anda e está sozinha no seu medo, do seu peito saem gritos surdos, quase se ouve a ganir de dor e medo. Perdeu o trabalho, não tem quem a possa ajudar e, em casa, tem dois filhos pequenos.
E a mulher caminha, de mãos nos bolsos, olhos no chão, sem esperança, aflita, sente-se perseguida mas não tem força para correr, quase não consegue respirar, um nó, um estrangulamento na garganta. Os seios encaroçados, os mamilos doridos, o leite preso, já falhou uma refeição, a criança deve estar a chorar de fome e ela chora, chora quase sem lágrimas, é quase um uivo o som que ouve formar-se dentro de si. O que fazer? O que fazer?
E, então, entra na água, um desespero total, uma desistência.
Mas logo um último rasgo de amor e, num arrependimento, sai a correr, e corre, corre e grita e os seus passos são densos, aflitos, e corre para matar a fome ao filho, os seios já pingam, meus filhos, meus filhos, e grita ainda mais alto, grita meus filhos, meus filhos.
[Depois desta aflição, sugiro que sigam até ao poema que inspirou estas palavras cheias de dor e depois, por favor, vamos lavar a alma. Inicio hoje a semana dedica a Mahler e só a música nos consegue levar até onde a alma se sente lavada]
Mulher caminha na praia, à beira do grande oceano |
Outra mulher: o susto
a entrar no pesadelo;
oprime-a o ar; e cada passo
é apenas peso: seios
donde os mamilos pendem,
gotas duras
de leite e de medo; quase pedras;
memória tropeçando
em árvores, parentes,
num descampado vigoroso;
e amor também;
espécie de peso que produz
por dentro da mulher
os mesmos passos densos.
['Descrição da guerra em Guernica', VIII, de Carlos de Oliveira]
Sem comentários:
Enviar um comentário