De cabeça baixa, vergado ao peso da memória, o homem avança. Não vai sozinho, vai acompanhado pelo silêncio, vai acompanhado pelas vozes que, dentro de si, lhe recordam os tempos em que todos os ouviam e em que ele a todos ouvia, como que pulsando todos em sintonia.
O homem vai levando pela mão um menino lívido, cheio de sonhos, um menino cheio de alegria que desconhecia que a vida caminharia, um dia, para o fim. Ao seu lado caminha, destroçado, um homem transparente, outrora um homem de cabeça erguida, agora um homem muito cansado.
O homem vai assim, acompanhado também pela música das ondas, pela música das aves que ele não vê e pouco mais. Caminha, pensativo, derrotado, rodeado de rostos transparentes, o do menino, o do homem curvado, o do homem que desconhecia a solidão e o sofrimento - rostos transparentes e silentes que o acompanham.
O homem caminha, pensamentos pesados que lhe vergam os ombros, e não vê a cidade que pulsa e que já pulsa sem ele, não vê as pessoas que passam e que ignoram a sua solidão.
Mais logo irá para casa, o menino transparente pela mão, o homem adulto transparente que o acompanha em silêncio, deitar-se-á, sempre em silêncio, tombará sob o peso da sua vida em escombros e sentir-se-á o mais vulnerável dos homens transparentes.
Mas talvez um dia o homem acorde e olhe pela janela abandonada e inesperadamente veja uma ave branca, não transparente, e, de entre os escombros, talvez se ouça uma música real e que, ao som dela, o homem saia de casa e abrace um menino de verdade e caminhe, de cabeça erguida, olhando a cidade na qual ainda pulsam corações que o querem ver sorrir. Talvez.
[Vou pedir-lhe um favor - desça um pouco mais, leia o belíssimo poema do Manuel António Pina e depois olhe pela sua janela, deixe-se ir ao som de um sublime excerto de uma peça para violoncelo e piano de Tchaikovky]
Homem caminha num dos cais do Ginjal, Tejo adentro, Lisboa já ali |
Um tempo houve em que,
de tão próximo, quase podias ouvir
o silêncio do mundo pulsando
onde também tu eras mundo, coisa pulsante.
Extinguiu-se esse canto
não na morte
mas na vida excluída
da clarividência da infância
e de tudo o que pulsa,
fins e começos,
e corrompida pela estridência
e pela heterogeneidade.
Agora respondes por nomes supostos,
habitante de países hábeis e reais,
e precisas de ajuda para as coisas mais simples
o pensamento, o sofrimento, a solidão.
A música, só voltarás a escutá-la
numa noite lívida,
uma noite mais vulnerável do que todas
(o presente desvanecendo-se, o passado cada vez mais lento)
um pouco antes de adormeceres
sob escombros.
('Sob escombros' de Manuel António Pina in 'Como se desenha uma casa')
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