Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

04 janeiro, 2012

Solta-se a voz do peso que a retinha e era mais que sufoco e privação

     
Chegas aqui trazido pelo peso que te sufoca, pela privação de confiança, e deixas-te cair. No peito um aperto, na garganta um nó. A voz presa, os olhos baços, alheias-te de quem te olha. És tu e a tua voz que não se solta. Pensas, é esta timidez, é esta incerteza.

Aqui estás, olhando a cidade luminosa, a cidade que veneras e não tens a quem dizer, esta cidade é muito bela, olhas o rio e pensas, sem voz, este rio é tão bonito. Pensas, vou deixar que a voz se solte. Mas receias que a voz voe pelos ares, que alguém te ouça, reprimes esse tão receoso impulso. E se a voz se esvai por este abismo à beira do meu peito?

Ai, esta minha voz que não se solta tanto é o medo de que caia onde ninguém a possa salvar...

O coração bate com mais força, a aragem aproxima-se e sabes que ela quer levar as tuas palavras. Estás sozinho, ninguém te ouve. Ninguém com quem falar, a voz perdeu o seu rumo, a voz perdeu-se na ausência de companhia. Com quem ajeitar as palavras, com quem conversar?

Sentas-te aqui, aconchegas-te em ti próprio, as mãos juntas entre os joelhos, ombros curvados, e pensas, é desta luz que assim ilumina a bela cidade, esta luz queima-me as palavras, esta luz impede-me a voz.

E então um súbito sobressalto, uma mão no teu ombro, um sorriso, um sopro de voz, uma aragem que ondula rente a ti. Olhas. Ouves então: 'que música é esta?' e então, sem bordão, sem medo, ouves-te a dizer, 'esta é a música das sereias que habitam o fundo do rio'. E não acreditas que estas são as tuas palavras, que esta é a tua voz.



[A música de hoje, já ali abaixo do poema, é de uma tão grande beleza que não deverá ser perdida. Pegue nas inesperadas palavras do homem à beira do rio e, com cuidado, leve-as consigo, e segure-as com cuidado enquanto ouvir o piano, o violino e violoncelo do trio de Tchaikovsky]

Suspenso sobre o azul do tejo, homem contempla Lisboa


                                       Solta-se a voz do peso que a retinha
                                       e era mais que sufoco e privação,
                                       - sendo incerteza,
                                       receio de rasgar-se, projectando
                                       a tímida afirmação do seu impulso.

                                       Onde o instrumento para a sossegar,
                                       a acompanhar com uns tragos, o bordão
                                       para as forçosas passagens rente ao abismo?
                                       Já se aproxima na mão que vibra um tema,
                                       chega com o sopro que ondula a sua parte.

                                       O seu encontro só assim se exprime.,
                                       aí se basta, não compõe sem eles
                                       a altura de cada um e o seu total:
                                       trago a extremar-se em luz para fundir-se
                                       num latejo que a vai sustendo e todo a serve.


                                       (Poema 112 de José Bento in Sítios)

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