Um ser esquivo passa por entre as ramagens na manhã ainda penumbrosa, enevoada. Vai, uma silhueta afrontosa, talvez um demónio. Ou apenas uma sombra esgueirando-se por detrás do rochedo. Em silêncio, guiado pelos poemas que povoam a sua mente, avança rente ao abismo do horizonte.
Numa outra noite alguém o viu rondando o baile em que rapazes e raparigas, junto ao rio, cantavam e dançavam. Alguém viu o seu vulto e logo fugiu, num susto. Uma mulher jura que uma noite ele roçou a sua janela, viu a sua fugaz silhueta passando breve e que logo, amedontrada, se escondeu, afogueada, debaixo dos lençóis.
À tarde, sentados na relva, sob a árvore quase despida, um grupo de homens e mulheres fala desta estranha e fugidia aparição. Será real? Será apenas fruto da imaginação?
As mulheres dizem que é humano, que é alto, bonito, atrevido, despudorado e dizem que, quando passa rente a elas, o ouvem a dizer toadas ritmadas, poemas desfiados como contas, que lhes sussurra palavras quentes junto ao pescoço que logo se arrepia. Os homens, então, dizem que é um ser perigoso, perverso, que elas não deixem que ele se aproxime, que elas os avisem logo que sintam a sua presença, que eles logo lhe atiçarão os seus cães raivosos.
As mulheres então calam-se e baixam os olhos.
Cada uma sabe que ele, mais que demónio, é um fantástico anjo alado, um anjo viril que as sabe acariciar como nenhum daqueles homens que ali está, um poeta sonhador e esquivo que usa as palavras como se as beijasse e que, de cada vez que as ama, é como se fosse a primeira vez, como se fossem virgens.
[O Unicórnio pede uma música transbordante de paixão - por isso, desça, por favor, que logo ali abaixo do poema há uma interpretação transbordante de emoção sobre uma música que é um fogo ateado]
Numa manhã fria no Jardim do Ginjal, cão fareja o Unicórnio |
É o mais solitário, o mais esquivo,
o mais sonhador dos animais,
o unicórnio - a cadência dos versos
guiando-lhe os passos. Alguns
dizem tê-lo avistado ao crepúsculo
da noite, aproximando-se apenas
de raparigas e rapazes virgens
ainda. Não sei de quem o tenha
acariciado. Há os que pensam ser,
graças ao corno desmesurado
e afrontoso da sua viriliadade,
encarnação do demónio. Talvez por isso,
os homens mal lhe pressentem o cheiro
atiçam-lhe raivosos os seus cães.
('O Unicórnio' de Eugénio de Andrade in 'Os lugares do lume')
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