Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

04 janeiro, 2012

Há os que pensam ser, graças ao corno desmesurado e afrontoso da sua virilidade, encarnação do demónio

 
Um ser esquivo passa por entre as ramagens na manhã ainda penumbrosa, enevoada. Vai, uma silhueta afrontosa, talvez um demónio. Ou apenas uma sombra esgueirando-se por detrás do rochedo. Em silêncio, guiado pelos poemas que povoam a sua mente, avança rente ao abismo do horizonte.

Numa outra noite alguém o viu rondando o baile em que rapazes e raparigas, junto ao rio, cantavam e dançavam. Alguém viu o seu vulto e logo fugiu, num susto. Uma mulher jura que uma noite ele roçou a sua janela, viu a sua fugaz silhueta passando breve e que logo, amedontrada, se escondeu, afogueada, debaixo dos lençóis.

À tarde, sentados na relva, sob a árvore quase despida, um grupo de homens e mulheres fala desta estranha e fugidia aparição. Será real? Será apenas fruto da imaginação?

As mulheres dizem que é humano, que é alto, bonito, atrevido, despudorado e dizem que, quando passa rente a elas, o ouvem a dizer toadas ritmadas, poemas desfiados como contas, que lhes sussurra palavras quentes junto ao pescoço que logo se arrepia. Os homens, então, dizem que é um ser perigoso, perverso, que elas não deixem que ele se aproxime, que elas os avisem logo que sintam a sua presença, que eles logo lhe atiçarão os seus cães raivosos.

As mulheres então calam-se e baixam os olhos.

Cada uma sabe que ele, mais que demónio, é um fantástico anjo alado, um anjo viril que as sabe acariciar como nenhum daqueles homens que ali está, um poeta sonhador e esquivo que usa as palavras como se as beijasse e que, de cada vez que as ama, é como se fosse a primeira vez, como se fossem virgens.



[O Unicórnio pede uma música transbordante de paixão - por isso, desça, por favor, que logo ali abaixo do poema há uma interpretação transbordante de emoção sobre uma música que é um fogo ateado]

Numa manhã fria no Jardim do Ginjal, cão fareja o Unicórnio



                                É o mais solitário, o mais esquivo,
                                o mais sonhador dos animais,
                                o unicórnio - a cadência dos versos
                                guiando-lhe os passos. Alguns
                                dizem tê-lo avistado ao crepúsculo
                                da noite, aproximando-se apenas
                                de raparigas e rapazes virgens
                                ainda. Não sei de quem o tenha
                                acariciado. Há os que pensam ser,
                                graças ao corno desmesurado
                                e afrontoso da sua viriliadade,
                                encarnação do demónio. Talvez por isso,
                                os homens mal lhe pressentem o cheiro
                                atiçam-lhe raivosos os seus cães.


                                ('O Unicórnio' de Eugénio de Andrade in 'Os lugares do lume')

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