Cansada, às vezes, acolho-me à beira da água. Respiro a maresia, o ar fresco, ouço o rio que corre em plena liberdade, deixo-me aqui ficar vendo os limos, as correntes, os ventos.
Cansada, às vezes, olhos os gatos da beira do rio, olhos os pombos do cais, invejo as gaivotas. Tenho esta coisa com as gaivotas. Aproximo-me delas e elas, sempre tão ariscas com toda a gente, deixam-se ficar, olham-me, e eu aproximo-me mais, silenciosa como uma gata, e chego perto, tenho vontade de me meter dentro do corpo delas. Outras vezes são elas que voam na minha direcção, sobre mim e eu deixo-me ali ficar, contente porque penso que me estão a reconhecer como irmã.
Cansada, tantas vezes, deixo-me embalar pelo grito das gaivotas, gosto de as ouvir assim falar, é uma fala misteriosa mas eu reconheço-a, é uma fala irreal que me embala, é o som da liberdade que atravessa os grandes espaços.
Nesses dias, o cansaço dissipa-se nos ares, leva-o o vento e, então, sinto-me livre e regresso leve como um inocente animal e, então, posso falar a imaterial voz do mar, posso soltar os livres gritos das gaivotas de longas asas que atravessam os espaços.
[A encerrar esta semana de Schubert, desça um pouco mais e venha ouvir a suave e forte voz de Jessye Norman, magnífica, em Ave Maria]
Gaivota livre, voando sobre o Tejo, voando entre o Ginjal e Lisboa |
Um dia, gastos, voltaremos
a viver livres como os animais
E mesmo tão cansados floriremos
irmãos vivos do mar e dos pinhais.
O vento levará os mil cansaços
dos gestos agitados irreais
e há-de voltar aos nossos membros lassos
a leve rapidez dos animais.
Só então poderemos caminhar
através do mistério que se embala
no verde dos pinhais na voz do mar
e em nós germinará a sua fala.
('Um dia' de Sophia de Mello Breyner)
afirmação pelo poeta dos poderes da natureza que nos pode reciclar do cansaço e do uso e devolver limpos aos elementos que a compõem e de que passaremos a fazer parte.
ResponderEliminarCaro Patrício Branco,
ResponderEliminarMuito gosto em tê-lo por cá, por estas minhas bandas da beira do Tejo.
Sábio comentário o seu. É isso mesmo. Tantas vezes, ao fim do dia, umas vezes, de manhãzinha, outras, me limpo de cansaços, me tonifico.
E é bem verdade que um dia à natureza voltaremos, talvez pó na terra, talvez poeiras sobre as águas.
Mas, por enquanto, prefiro aspirar o ar limpo da natureza, limpar-me do ar rarefeito do edifício sem janelas em que passo os dias da semana.
Volte sempre, Caro Patrício.
Não sei de quando será o poema de smba, talvez de há 40 anos, podendo falar-se duma teoria ecologica avant la lettre expressa numa poetica
ResponderEliminarTem razão (e tem graça).
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