Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

04 dezembro, 2011

Somos intrusos, bárbaros amigáveis e estamos de passagem


Olhas-me com um longo e silencioso olhar, um olhar claro, verde, sábio. Não deixas transparecer emoção, juízo de valor, nada. Aproximo-me, rodeio-te, olho-te e tu segues-me com o teu olhar neutro. Depois, discreto, desvias ao de leve o olhar, e há toda uma subtileza nesse gesto tão suave.

Eu estou de passagem, sabes disso, e tu não, tu habitas este espaço. A minha presença é efémera e, por muito que eu tente alongar o tempo, tu sabes, eu sei, que estou de passagem nesta minha vida tão efémera. E eu que por aqui passo, sei que estou a andar num território que é teu, estou a pisar este vasto aposento atapetado a verde, onde um rio corre devagar, um aposento com uma vista fabulosa, a tua casa. Eu sou aqui uma intrusa, amigável mas intrusa e tu olhas-me, compassivo, vês como tento aproximar-me, vês como tento perceber-te, vês que quero perceber que me aprovas.

Permites-me até a ilusão de que me conheces, de que me deixarás tocar-te. Vejo compaixão no teu olhar. Quase sinto que ao olhares-me, olhas por mim, que, apesar de distante e quase imaterial, sempre que eu precisar, olharás por mim. Que sempre estarás aqui por mim.



[Abaixo do gato que tem um deus secreto dentro dele, encontrará o poema do nosso Prémio Camões mas, por favor, não se fique por aí - logo abaixo, a abrir a semana de Schubert, encontrará um sublime improviso, um piano que iluminará o seu dia, o nosso dia]

Maravilhoso gato no Ginjal, à beira do Tejo, com vista sobre Lisboa


                                Há um deus único e secreto
                                em cada gato inconcreto
                                governando um mundo efémero
                                onde estamos de passagem

                                Um deus que nos hospeda
                                nos seus vastos aposentos
                                de nervos, ausências, pressentimentos,
                                e de longe nos observa

                                Somos intrusos, bárbaros amigáveis,
                                e compassivo o deus
                                permite que o sirvamos
                                e a ilusão de que o tocamos


                               ('Os gatos' de Manuel António Pina in 'Como se desenha uma casa')

 

Sem comentários:

Enviar um comentário