Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

08 dezembro, 2011

Longe de ti eu serei esse primeiro luar, gentil fluir de gotas de água

 
Passeio ao longo do rio, deslizo com o vento e, tantas vezes, sinto que vou pelo sonho. Longe estão os teus olhos que sei tão doces, longe o teu sorriso que adivinho, que me afagaria em silêncio. Mas eu continuo a caminhar.

Prendo-me ao teu olhar abstracto, ao calor do teu rosto inventado, sonhado, recordado, e assim vou caminhando no frio. Este rio que tanto amo acompanha-me, as suas gaivotas livres também. E há as pessoas que por aqui se cruzam comigo e cujo olhar evito. Apetecem-me os teus olhos, não outros olhos. Mas vou caminhando.

Longe de ti, sem nada a temer, vou escrevendo estas palavras. São palavras que solto ao vento, pétalas de rosa, penas suaves, palavras que lês e que sabes que são para ti, meu leitor secreto. O outono retira as folhas das árvores, atapeta o chão e eu, que por aqui caminho, vou pisando estas folhas ainda por escrever, e vou pensando em ti, meu amor que o mar me traz em sonhos, meu amor que, como eu, tanto amas as palavras.

Olha, escuta-me - tu, que me lês, sente-me assim nas minhas palavras, nestas palavras limpas, nuas, cheias de sombra, cheias de luz, sente-me assim, como um primeiro luar, como um fruto húmido, sente-me, inventa-me.



[A seguir ao poema não deixe, por favor, se descer um pouco mais - Schubert espera-nos, sublime]

À beira Tejo, numa ensolarada tarde de Outono

                          Sem nada temer,
                          e guiado pela mão escrevente,
                          cavalgo para o sonho.

                          teus olhos tocam o cinzento abstracto dos dias,
                          desconfia sempre que alguém disser:
                          "ainda há um dizer primordial."

                          longe de ti,
                          eu serei esse primeiro luar,
                          gentil fluir de gotas de água.

                          literalmente limito-me a querer
                          alimentar a ferida aberta,
                          vidros baços sem arestas,
                          meros frutos húmidos
                          trazidos pelas ondas.


                          (Poema XXXIX de Ricardo Gil Soeiro in 'Espera vigilante')

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