Passeio ao longo do rio, deslizo com o vento e, tantas vezes, sinto que vou pelo sonho. Longe estão os teus olhos que sei tão doces, longe o teu sorriso que adivinho, que me afagaria em silêncio. Mas eu continuo a caminhar.
Prendo-me ao teu olhar abstracto, ao calor do teu rosto inventado, sonhado, recordado, e assim vou caminhando no frio. Este rio que tanto amo acompanha-me, as suas gaivotas livres também. E há as pessoas que por aqui se cruzam comigo e cujo olhar evito. Apetecem-me os teus olhos, não outros olhos. Mas vou caminhando.
Longe de ti, sem nada a temer, vou escrevendo estas palavras. São palavras que solto ao vento, pétalas de rosa, penas suaves, palavras que lês e que sabes que são para ti, meu leitor secreto. O outono retira as folhas das árvores, atapeta o chão e eu, que por aqui caminho, vou pisando estas folhas ainda por escrever, e vou pensando em ti, meu amor que o mar me traz em sonhos, meu amor que, como eu, tanto amas as palavras.
Olha, escuta-me - tu, que me lês, sente-me assim nas minhas palavras, nestas palavras limpas, nuas, cheias de sombra, cheias de luz, sente-me assim, como um primeiro luar, como um fruto húmido, sente-me, inventa-me.
[A seguir ao poema não deixe, por favor, se descer um pouco mais - Schubert espera-nos, sublime]
À beira Tejo, numa ensolarada tarde de Outono |
Sem nada temer,
e guiado pela mão escrevente,
cavalgo para o sonho.
teus olhos tocam o cinzento abstracto dos dias,
desconfia sempre que alguém disser:
"ainda há um dizer primordial."
longe de ti,
eu serei esse primeiro luar,
gentil fluir de gotas de água.
literalmente limito-me a querer
alimentar a ferida aberta,
vidros baços sem arestas,
meros frutos húmidos
trazidos pelas ondas.
(Poema XXXIX de Ricardo Gil Soeiro in 'Espera vigilante')
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