Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

07 dezembro, 2011

É então isto um livro, este, como dizer?, murmúrio, esta espécie de coração (o nosso coração)?

 
Na minha casa os livros são os habitantes privilegiados. Ocupam os lugares mais nobres, ocupam todos os espaços que querem ocupar, saem das estantes, são insubmissos, são amigos, são disponíveis.

Se me desloco, o conjunto dos livros é o que mais pesa na bagagem. Livros de poesia, romances, ensaios, economia, sociologia, política, autobiografias, arte. Gosto de abrir, ler um pouco, gosto de os sentir, gosto de os desfolhar. Gosto do que me ensinam, do que me mostram, do que me tocam.

Vou às livrarias, vagueio entre as estantes, gosto do cheiro, do toque, do papel, do grafismo, abro, leio uma linha de uma página, folheio, outra linha, e logo ali sinto se há empatia, química.

Gostava de escrever um livro, gostava de ter paciência para pegar em tudo o que escrevi e seleccionar e, a seguir, dar às minhas palavras a forma de um livro. Mas, se o fizesse, nunca seria capaz de lhe pegar. Talvez pelas mesmas razões, não consigo reler o que escrevi, nunca consigo, é tudo demasiado pessoal, ou datado - não sei, as palavras já me fugiram, já não são minhas.

Mas e os escritores, como fazem? Gostam de se reler, põem cuidados na afinação de textos pretéritos, sentem-nos ainda como seus?

Eu não consigo, só me apetece escrever mais, escrever, pôr as mãos dentro do coração e passar o sangue, as pulsações, o calor do interior do corpo, da carne, para palavras, deixar que as letras se juntem sozinhas, se ajeitem, que as palavras apareçam sem a minha intervenção racional, que as palavras latejem aqui à minha frente no écran. Os meus dedos agitam-se no teclado e os meus olhos vão reparando nas palavras que ali vão aparecendo, ainda com o meu cheiro, ainda com a placenta, ainda umbilicalmente ligadas a mim. E depois, amanhã, já não as quero ver, já se fizeram à vida, e outras já se impacientam para viver.

Palavras, murmúrios, uma voz inocente, um desbravar por dentro de nós, um rosto virado para dentro no escuro, um amor sem condições. Folhas soltas, textos largados ao vento.

Ou um livro. É isto também um livro?



[Manuel António Pina fala sobre os livros e como eu gosto das suas palavras. A seguir, desça um pouco mais que Schubert far-lhe-á uma boa companhia. Piano e palavras.]


À beira do Atlântico, escrevendo
                      

                       É então isto um livro,
                       este, como dizer?, murmúrio,
                       este rosto virado para dentro de
                       alguma coisa escura que ainda não existe
                       que, se uma mão subitamente
                       inocente a toca,
                       se abre desamparadamente
                       como uma boca
                       falando com a nossa voz?
                       É isto um livro,
                       esta espécie de coração (o nosso coração)
                       dizendo 'eu' entre nós e nós?


                       ('Os livros' de Manuel António Pina in 'Como se desenha uma casa')

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