Vamos sonhar.
Vamos ser felizes, sabendo que somos felizes só por sonhar.
Tenho para mim que nunca acontecerá. Mas quem nos impede de sonhar?
Sonhemos.
Sonhemos que um dia me esperas nesta varanda, com uma sombra fesca, com pássaros cantando, com vasos de flores nos degraus. Esperas-me nesta varanda, olhando o Tejo, olhando Lisboa. Sabes que virei num barco ou que virei a voar e esperas-me.
Não sabes como sou mas adivinhas-me. Imaginas-me.
Sabes que virei a sorrir, que te abraçarei, que te beijarei.
Sabes que te porei um braço à volta da cintura e que deixarei que ponhas o teu braço sobre os meus ombros. És meigo, seu sei.
Esperas-me e queres comigo ouvir os teus pássaros, ver as tuas flores, queres contar-me dos teus avós, dos teus tios, dos teus pais, dos que recordas com saudades de menino, e sabes que te ouvirei enfeitiçada. Tens um belo timbre de voz, eu sei.
Esperas-me e queres apenas olhar o rio, o céu, as casas, ouvir os pássaros e nada dizer, queres olhar-me e queres que eu te olhe, dir-me-ás que qualquer palavra poderá estragar tanta perfeição, e eu respeitarei os teus silêncios.
Mas sabes que eu, quando te distraires ou durante a noite, enquanto dormires, partirei dali a voar. Porque sou assim ou porque a vida é assim.
Por isso, sonha apenas, sonha apenas comigo nos teus braços porque, na verdade, dificilmente poderás, um dia, acordar entre os meus braços. Mas sejamos felizes a sonhar. Sonhar é bom.
Lisboa e o Tejo avistados da Casa da Cerca |
um dia, quando a ternura for a única regra da manhã,
acordarei entre os teus braços. a tua pele será talvez demasiado bela.
e a luz compreenderá a impossível compreensão do amor.
um dia, quando a chuva secar na memória, quando o inverno for
tão distante, quando o frio responder devagar com a voz arrastada
de um velho, estarei contigo e cantarão pássaros no parapeito da
nossa janela. sim, cantarão pássaros, haverá flores, mas nada disso
será culpa minha, porque eu acordarei nos teus braços e não direi
nem um apalavra, nem o princípio de uma palavra, para não estragar
a perfeição da felicidade.
(Belo poema de José Luís Peixoto in A criança em ruínas)
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