Continuemos a sonhar.
Um dia, no passado antigo ou num futuro imaterialmente futuro, aconteceu uma coisa.
Dizem os homens sábios que nesse dia não voaram pombas nem caíram lírios, dizem que era um dia normal.
Apenas sabem que às portas de Damasco um homem e uma mulher desobedeceram e, de mãos dadas, atravessaram a cidade e, entre muros, tombaram, corpos finalmente unidos.
Dizem as mulheres que vigiam as ruas, que vigiam o amor e os sonhos alheios, que nesse dia, que era um dia normal, sem estranhos desígnios, o homem sorria para a mulher e a mulher sorria para o homem, como se não houvesse mais ninguém na cidade e juntos, de mãos dadas, abriram uma espessa porta e perderam-se, amantes, entre as sombras do jardim.
Não sabem o que o homem e a mulher viram quando os corpos se uniram e morreram de amor nos braços um do outro, não sabem que nessa altura, sobre eles, apenas sobre eles, caíram lírios e voaram pombas, terna imagem.
Assim eu vi e assim viu aquele que o meu coração ama.
Mas isto somos nós a sonhar.
Elegante e serena em Belém, num belíssimo fim de tarde |
Aquele que o meu coração ama
estendeu-me o corpo
e nele
assim
morri
Sem nada a assinalar de especial
segundo afirmaram todos os
homens sábios da cidade
sem pombas nem lírios
sem crianças de olhos vazios
sem estranhos desígnios prometidos
nas vísceras dos animais sacrificados
dizem apenas que
o eco das mulheres de Sião
nos reclamava de muito longe
como se lhes tivéssemos desobedecido
aquele que o meu coração ama
estendeu-me o corpo
e nele
assim
morri
("Aquele que o meu coração ama estendeu-me o corpo" de Alice Vieira in 'O que dói às aves')
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