Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

12 abril, 2011

Uma boca na outra, dois hálitos num só, cada vez reduzem mais o sulco que principia a escoar-se

Hoje quero dizer-te que não esqueço os momentos em que as nossas bocas se uniam, em que a minha carne se completava na tua carne, em que eu sentia a tua pele sobre a minha pele, em que as tuas mãos me percorriam e as minhas te percorriam a ti.
Não esqueço.
Não esqueço a minha mão no teu cabelo.
Não esqueço o teu olhar mergulhado no meu, até que o meu rosto deixava transparecer todos os meus segredos.
Não esqueço as pernas abraçadas, não esqueço os nossos corpos a celebrarem o sentimento que nos unia.

Não sei, hoje, quando voltaremos a ter estrelas para iluminarem a nossa festa, não sei quando completaremos a dança que iniciámos e que nos transformou.

Mas hoje digo-te, uma vez mais: vives dentro de mim.

Cadeira num dos cais do Ginjal, mesmo em cima do Tejo, de frente para Lisboa, a gloriosa

Uma boca na outra, dois hálitos num só,
cada vez reduzem mais o sulco
que principia a escoar-se.
Uma das mãos sustém uma nuca sem peso,
abeira seus cabelos, luz a apagar os ombros;
febril, a outra requesta
curvas ávidas, inquietas, que respondem
à tensão e desordem de um apelo.

Assim as mãos percebem ser a hora
de cumprir o que desejam.
Mas nenhum conhecimento
as persuade a não estremecerem
com a radiação do sangue desvelado,
turbando-as, aplacando-as
na esperança de se apossar do que tenteiam:

os olhos absorvem quanto se lhes oferece
até reconhecerem não ser o bastante
para aplacar o recíproco alvoroço:
cada corpo tem de apurar no outro
a própria claridade.

Nada conspira para refrear
a ascenção de ambos,
com serpeantes olores na sua fala,
as pernas abraçadas, não a travar a sua fuga
mas porque assim se conjugam no voo
e transbordam num só, insaciado.

Os corpos concentram em seu vértice veemente
a premência que atingem para dar-se,
- carne a completar-se em outra carne
numa unidade colhida e laborada:
orvalho ou sortilégio da pele sobre a pele,
ímpeto quase dolorido
a esvair-se e deleitar-se em gomos
sôfregos da quietude prometida
para a celebração que incitam e consumam.

Os segredos de um rosto transparecem
por fim na abundância do outro.

Não sabe nenhum deles se hoje haverá noite,
mas estrelas hão-se acordá-los ao partirem
para na alva recriarem a música sem pauta,
a dança onde completem a viagem
que jamais termina sem nos transformar.

(Poema 29, 'Uma boca na outra', belíssimo, belíssimo poema de José Bento in Sítios)

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