Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

29 novembro, 2010

Eu que sou feio, sólido, leal, a ti, que és bela, frágil, assustada, quero estimar-te sempre

Dizias, meu querido, que eu te tornava  prestante, bom, saudável.

E dizias que me olhavas o corpo enquanto me vias pela porta envidraçada, e dizias que, por ti, me dedicarias a tua vida.

Tu, hábil, prático e viril dizias-me isso a mim, que sou ténue, dócil, recolhida e que gostava tanto de te ouvir.

(Antes que cheguem os clientes, um momento de reflexão, à porta de um restaurante em Cacilhas. ali bem às portas do Ginjal)

Eu, que sou feio, sólido, leal,
A ti, que és bela, frágil, assustada,
Quero estimar-te sempre, recatada
Numa existência honesta, de cristal.

Sentado à mesa dum café devasso,
Ao avistar-te, há pouco, fraca e loura,
Nesta Babel tão velha e corruptora,
Tive tenções de oferecer-te o braço.

E, quando socorreste um miserável,
Eu, que bebia cálices de absinto,
Mandei ir a garrafa, porque sinto
Que me tornas prestante, bom, saudável.

"Ela aí vem!" disse eu para os demais;
E pus-me a olhar, vexado e suspirando,
O teu corpo que pulsa, alegre e brando,
Na frescura dos linhos matinais.

Via-te pela porta envidraçada;
E invejava, — talvez que não o suspeites! -
Esse vestido simples, sem enfeites,
Nessa cintura tenra, imaculada.
[...]

Com elegância e sem ostentação,
Atravessavas branca, esbelta e fina,
Uma chusma de padres de batina,
E de altos funcionários da nação.

"Mas se a atropela o povo turbulento!
Se fosse, por acaso, ali pisada!"
De repente, paraste embaraçada
Ao pé dum numeroso ajuntamento.

E eu, que urdia estes fáceis esbocetos,
Julguei ver, com a vista de poeta,
Uma pombinha tímida e quieta
Num bando ameaçador de corvos pretos.

E foi, então, que eu, homem varonil,
Quis dedicar-te a minha pobre vida,
A ti, que és tênue, dócil, recolhida,
Eu, que sou hábil, prático, viril.

(Excertos de Débil de Cesário Verde, in 'O Livro de Cesário Verde')

3 comentários:

  1. é curioso, como gostas de fotografar a componente humana, G....

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  3. É verdade. Acho que o cenário natural, por mais belo que seja, ganha em ser colocado em perspectiva, enquadrando nele o homem ou a sua obra. Por isso, gosto tanto de fotografar alguém que anda, alguém que pensa, que olha; ou as palavras que alguém escreveu, ou um pano que alguém ali deixou.

    No Ginjal encanta-me o local mas encanta-me também a sorte que as pessoas que por ali andam têm por poderem estar dentro de um cenário maravilhoso.

    No caso desta fotografia não é disso que se trata mas quis retratar aquele ambiente familiar, de tascas, nos momentos que precedem o movimento dos clientes.

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